Há uma semelhança entre o achatamento de histórias miscigenadas (que vão sendo "esquecidas" no decorrer dos tempos) e os soterramentos da natureza. A agressividade que recursos naturais - esses grandes corpos vivos - são massacrados pelos colonialismos atualizados levam junto com eles as subjetividades e multiplicidades das gentes que vivem com eles. Junto se vão também a continuidade das histórias dali. Penso no Rio Doce, assassinado pela barragem de Brumadinho; o Rio Xingu com seu curso natural alterado pela barragem de Belo Monte; o Rio Amazonas, em Parintins, que atingiu a maior seca registrada em mais de 40 anos de acompanhamento do SGB no ano de 2023. Lembro também de Karobixexe, ou Cachoeira das Sete Quedas do Rio Teles Pires, da qual ouvi falar em Altamira e que foi submersa durante a construção do complexo hidrelétrico de Teles Pires - a cachoeira guardava um cemitério sagrado, além de ser a morada da "Mãe dos Peixes". Grandes corpos naturais como florestas, bacias hidrográficas e a estrutura terrestre que possibilita a existência humana, seguem sendo colididas por noções de "desenvolvimento" que insistem em seguir o mesmo raciocínio euro-cristão de evolução e conquista. Observam-se efeitos colaterais semelhantes entre os corpos humanos, vegetais, animais e minerais: efeito-reação, efeito-resistência. O rio desaparece em um lugar para reaparecer em outro, novas espécies podem surgir, folhas nascem do concreto e as lavas de vulcões conservam bactérias semelhantes às responsáveis pela existência humana. Como uma dança, o que some aqui ressurgirá em outro lugar - mesmo que em tempos diferentes.
Neste movimento de desaparecimento e aparecimento acredito que existe o lugar escuro da fecundidade, um ponto de recálculo de rota, onde o movimento transfluente trabalha para o grande retorno. Entre o sono e o insone, entre o sonho e a falta de visão nítida, entre o breu e o brilho. Neste "entre" existe uma encruzilhada de tudo que há de mais profundo, e isso dá medo. Esperar a visão se acostumar com o baixo índice de luz e afiar a sensibilidade do toque e da intuição são os pilares para o desenho de uma coreografia do retorno: uma coreografia para emergir ao brilho encegueirante da superfície, essa dança - que o broto faz no âmago da Terra em busca do Sol - que Carlos Papá, sob a cosmologia Guarani M'bya nos ensina ser uma dança chamada Arandu.
@dudatoro